De como um espetáculo me mostra que a crítica é uma puta ignorante – com respeito às putas, que são infinitamente melhores. Ou: o teatral está em tudo quando o olho se dispõe a ver.“
Automákina”
Espetáculo de rua de Porto Alegre, RS.
Ainda não sei bem ao certo como chamar: espetáculo, instalação, performance, happening, música e/ou/+ dança? Ou + teatro? E por que essa necessidade de definir? Às vezes acho um saco que a gente passe meia vida tentando definir o que não precisa, necessariamente, ser definido. Mas, como diz a professora de voz e vozterapeuta Sônia Prazeres, do Rio de Janeiro, desde que a gente colocou essa bendita vértebra em pé, essa última, que liga o pescoço à cabeça, e que andamos assim, com o olhar no horizonte e o nariz empinado, desde essa época, temos necessidade de fazer tudo passar pela tal da razão... e aí surgem os conflitos, e as inevitáveis vontades de classificar, definir, rotular.
Aliás, preciso só falar um pouquinho mais disso. Às vezes converso com os amigos e pergunto: vocês já pararam pra pensar que a gente tenta racionalizar e explicar tudo, e que no fundo, o fenômeno é algo simples? Por exemplo, se alguém grita e bate em outrem, por alguma razão, a filosofia tenta explicar de uma forma, a psicologia de outra, o direito de outra e o ator de outra ainda. E, no fundo, as quatro “dissertações” totalmente diferentes partiram de um único e mesmo fenômeno: a agressão, nesse caso. Também já parei pra me questionar quanto às religiões, nessa mesma lógica: se 20 religiões acreditam em um deus cada uma, quando é que elas vão se dar por conta que, se Deus existe, ele é só um? Prefiro ver o fato como uma alegoria, mas é incrível questionar o quão irracionais podemos ser na busca pela racionalidade.
Mas e o “Automakina”? Pois é... em poucas palavras, existe um maquinário enorme e lindo no meio da praça pública, e um homem que se utiliza desse maquinário de várias formas, em 50 minutos de sons, luzes, músicas, instrumentos tocados, técnicas circenses, e muita tecnologia.
Nenhuma palavra, e muitas coisas ditas, ainda que simbolicamente. Aliás, acho um grande mérito da “ação” – não vou chamar de espetáculo ou performance, mas “ação”, pois certamente é algo que acontece em função de transformar uma realidade na qual está inserido – um grande mérito é o fato de que, apesar de não definir padrões, existe sim uma comunicação com o público, seja pela grandiosidade do maquinário – que por muitas vezes me lembra uma obra visual do artista Max Ernst – ou pela dinâmica do que acontece no tempo em que se desenrola o texto: sim, pois há um texto, mesmo que não haja uma só palavra: o texto cênico, a dramaturgia cênica, e não aquela textual de Ibsen ou de Nelson Rodrigues.
Agora, mais do que qualquer sensação despertada pela apresentação em si, o que me deixa absolutamente encantado é o poder que a arte tem de comunicar-se com o público, especialmente em um espaço aberto, no qual as pessoas que assistem param suas vidas por alguns momentos pra “ver o que está acontecendo”, e acabam tendo o dia modificado em virtude do contato com aquela “idéia” plasmada ali, em praça pública, em ferro fundido, carne e suor.
E é justamente nessa direção que acabo refletindo, tendo ficado na tênue linha que separa o público da crítica. Visualizem: estava eu assistindo, atrás de mim dois camaradas totalmente à vontade em comentários sobre a peça e, à minha frente, um crítico, munido de caneta, caderninho, óculos e muita superficialidade.
Camarada 1 – Tu tá filmando?
Camarada 2 – Tou! Tu também tá! Com o celular!
Camarada 1 – Tou sim! Vou botar tudo no Youtube. Esse cara é louco! Olha o maquinário!
Camarada 2 – Bah... essa é a engenhoca do ano!
Enquanto isso o crítico escrevia (eu lia discretamente o bloquinho):
Tem uma máquina. Ela gira. Tem um DNA girando.
Camarada 1 – Meu, vou ter que mostrar isso pra minha mãe! O cara andando na rua e vê isso! O cara é louco!
Camarada 2 – Ou é desocupado! Vou mostrar pra minha que me acha vagabundo!
Camarada 1 – Olha! Ele tá tocando música! Que a fudê!
Camarada 2 – Não é qualquer um que faz uma dessas hein! O cara é bom!
Mais alguns minutos se passam, e o crítico complementa a genial frase de antes:
Tem uma máquina. Ela gira. Tem um DNA girando. Ele tira um peixe. O peixe tem a cara dele.
Bom... prefiro não comentar mais a respeito... Não sei quantas páginas, parágrafos ou frases terá a crítica desse moço, desse cara de óculos que chegou atrasado no espetáculo e fez essas anotações “geniais” a respeito de um espetáculo complexo de 50 minutos. Sei é que prefiro entrar no youtube e ver a visão “leiga” dos passantes com comentários provavelmente engraçados a respeito da performance de rua, a ler o que um crítico mal saído das fraldas tem a dizer a respeito de algo que, ao que parece, ele não teve simplicidade suficiente pra aproveitar.
O peixe deve ter a cara dele.